quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Romaria da Terra: Por Que?

por Frei Wilson Dallagnol*
“A terra não pode ser transformada em simples mercadoria para produzir lucro,
através da especulação ou da exploração do trabalho”
(CNBB, A Igreja e a questão agrária no século XXI, nº 89)

Romaria, romeiro, peregrinação, peregrino... Sou eu, é você, é o Povo de Deus desde o tempo de Abraão. É ir onde Deus nos envia. É “saída” do próprio eu e do próprio lugar para experimentar novos ares, novos ambientes de vida.
Quando nos colocamos em romaria é porque acreditamos que juntos podemos alimentar sonhos, reforçar utopias, debater problemas, buscar soluções, partilhar conquistas... É o encontro com o Deus da vida que alimenta a luta. A Romaria da Terra é tudo isso, feito em mutirão, coletivamente.
A Romaria da Terra tem a marca da consciência de uma fé madura e engajada no compromisso de transformação da sociedade. Ela é o alimento espiritual daqueles que lutam pela vida. É a luta pela terra, compreendida como dádiva de Deus e como espaço de vida. E junto com a terra está a luta por saúde, escola, água, transporte, alimentação saudável, ecologia... Assim, a Romaria da Terra une fé e luta, fé e vida.
Os pobres da terra podem dizer na Romaria da Terra o que sentem, sofrem, desejam, em uma linguagem popular. É a expressão da vida, da caminhada penitencial, do sentimento comum, da denúncia... A Romaria da Terra revela a realidade da vida e do sonho do Povo da Terra, do campo e da cidade.
A terra é lugar sagrado, feito com carinho por Deus, a fim de ser o chão, onde firmamos os pés e tiramos o indispensável para a vida: alimento, abrigo, saúde, lazer... É um bem natural, que pertence a todos. Ela não foi dada a ninguém, mas tão somente “emprestada” por Deus, para que pudéssemos viver.
Portanto, a terra é um “bem emprestado”. Como inquilinos não podemos devolvê-lo ao Deus Criador estragado. No começo, todos a respeitavam realmente como um bem, tirando tão somente o necessário para viver. Não havia cercas. Ninguém era dono individual (privado) de nada. Tudo estava a serviço de todos, segundo o plano de Deus. Mais tarde, alguns começaram a se apoderar de enormes áreas, considerando-se donos exclusivos, como se tivessem recebido “escrituras” de Deus. Foi o início da exploração do homem pelo homem. A Romaria da Terra é uma denúncia a esta compreensão errada e enganosa da posse e do uso da terra.
A Pastoral da Terra assumiu a riqueza da experiência popular. Começou a promover no Brasil, Romarias da Terra, das águas, das matas e florestas... Nossa Romaria da Terra é feita nos lugares de conflitos e cruzes dos agricultores. Ela vai a um lugar onde o povo está sofrendo e o anima, confrontando com o Evangelho as diversas experiências e conquistas. A Romaria da Terra no Rio Grande do Sul é feita em “lugares símbolos” de luta do Povo de Deus. O próprio “lugar” é motivo forte de realização da Romaria da Terra.
A Romaria da Terra é a “grande Romaria” de todos os sem terra: atingidos por barragens, índios, negros, mulheres, pequenos agricultores, meeiros, safristas, boias-frias e jovens que buscam dias melhores. Com a Romaria da Terra, faz-se memória das tantas romarias feitas por Abraão, Moisés, Débora, Rute, Maria...
O sentido da Romaria da Terra expressa a realidade que o povo da terra vive. É, portanto, ato penitencial, símbolo levado ao altar, poesia ou trova que se proclama na tribuna do povo, caminhada por um mundo novo e liberto. 
A Romaria da Terra é capaz de “ensaiar” um tempo novo, alentando a esperança. É a celebração em que o povo se reúne para louvar e agradecer a Deus pelas conquistas alcançadas. Ela faz eco da relação dos romeiros com a terra e com a vida, como inspiração de Deus e como tarefa que Ele pede de todos.
A Romaria da Terra expressa a caminhada do Povo de Deus em busca “de nova aurora, de um novo dia”. É profunda sintonia do desejo de Deus, que vê, ouve e se sensibiliza como os clamores de seu Povo e que a Igreja ensina em sua Doutrina Social.
E o que dizer da “data” da Romaria da Terra no RS? Ela acontece na terça-feira de carnaval, por ser o aniversário da morte de Sepé Tiaraju. É a lembrança da História dos Sete Povos das Missões. No dia 7 de fevereiro de 1756, os invasores espanhóis e portugueses mataram Sepé Tiaraju e 1.500 soldados indígenas, terminando a República Cristã dos Guarani, que batizou todas estas terras do Sul. Estes sim foram os invasores!
A cada ano, os romeiros da terra fazem ecoar o grito de Sepé: “Alto lá, esta terra tem dono. Nós a recebemos de Deus e só Ele nos pode tirar”. As Romarias da Terra fazem parte da agenda do militante popular desde 7 de fevereiro de 1978.
Os índios inspiram os colonos a se organizarem e lutarem pela terra, pela água, pela alimentação saudável. A partir da Romaria da Terra consolidou-se uma unidade entre os pobres do campo e da cidade. Aqueles que lutam pela vida estão juntos e buscam soluções de força organizada e sadia.
A Igreja, a sociedade organizada, os índios, os quilombolas, os camponeses e seus movimentos populares vão unificando suas lutas e consolidando suas conquistas, ao redor de um mesmo projeto, que para nós é o Reino de Deus. E a Romaria da Terra é um espaço sagrado para unificar e solidificar as lutas do Povo simples e humilde. Não por nada que já está na sua 38ª edição.

Questão para debate:
1. Qual a relação entre a fé que professamos e as lutas sociais por reforma agrária, preservação do meio ambiente, apoio à agricultura familiar, produção ecológica de alimentos, entre outras?

*Frei Wilson Dallagnol é Capuchinho, Teólogo, membro da Coordenação da CPT-RS e professor na faculdade de Teologia da ESTEF.

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