segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Função Social da Propriedade da Terra no Ensino Social da Igreja

Por Frei Flávio Guerra*

Introdução.
O presente texto pretende refletir sobre a função social da propriedade da terra à luz do Ensino Social da Igreja. Não apenas no sentido de conhecer o que a Igreja diz, mas principalmente, para iluminar a situação atual da terra no contexto da realidade brasileira e para ajudar a aprofundar o tema desta 37ª Romaria da Terra. O caminho percorrido apresenta a função social da propriedade da terra na Constituição Federal; a mensagem bíblica sobre a propriedade; o sentido da função social da propriedade no Ensino Social da Igreja e a avaliação moral do latifúndio, da ocupação da terra e do trabalho agrícola.

I. Função social da propriedade na Constituição.
O direito de propriedade é garantido pela Constituição Federal. Esse direito não é absoluto, isto é, cada um faz de sua propriedade o que bem quiser. O seu uso está condicionado à chamada função social da propriedade. Ela está descrita nos artigos 185 e 186 da Constituição Federal. Neles são descritos cinco critérios para que uma propriedade cumpra a sua função social: seja produtiva; tenha aproveitamento racional e adequado; seus recursos naturais sejam utilizados de forma adequada e haja preservação do meio ambiente e sua exploração favoreça o bem estar dos proprietários e dos trabalhadores.
A lei garante a função social da propriedade, mas na prática ela não pode ser aplicada em benefício dos trabalhadores sem-terra, dos indígenas, dos posseiros e extrativistas. O motivo disso está no fato da bancada parlamentar ruralista ter introduzido na Constituição Federal a palavra produtiva com o objetivo de impossibilitar a reforma agrária. O entrave acontece de duas formas. O INCRA tem a função de determinar periodicamente os critérios que definem se uma propriedade é produtiva ou não. Ele o faz em cima do grau de utilização da terra que deve alcançar índices compatíveis com sua capacidade de produção. Esse procedimento do INCRA gera sempre grande polêmica com os grandes proprietários que simplesmente não aceitam a determinação do INCRA.
O entrave mais grave é a verificação da produtividade que está sob a responsabilidade do INCRA, pois a mesma emperra nas burocracias legais retardando, ao máximo, a sua liberação. Além disso, uma das grandes limitações da vistoria da propriedade é sua vinculação, apenas, ao índice econômico, isto é, da produtividade. Nela não é levado em conta o índice do meio ambiente e da dignidade dos trabalhadores, isto é, de seus direitos à vida e a cidadania.

II. Mensagem bíblica sobre a propriedade da terra.

1. A terra dom de Deus para todos.
Deus criou a terra e tudo o que existe. “No princípio, Deus criou o céu e a terra”(Gn 1, 1ss). Por isso, ‘Deus é o criador e soberano Senhor de tudo (Sl 94). Ele criou o ser humano a sua imagem e semelhança (Gn 1, 27). E presenteou ao ser humano tudo o que criou. “Tudo o que vive e se move servirá de alimento para vocês e a vocês eu entrego tudo (Gn 9, 3). Em seguida, Deus define a tarefa fundamental do ser humano em relação à terra. Ela é definida por duas palavras: ‘sujeitar’ e ‘dominar’. Essas palavras não tem o sentido de domínio, mas indicam a relação adequada do ser humano com a natureza. Tanto “o homem e a mulher devem cuidar da criação para que esta sirva para todos e fique a disposição de todos, não somente de alguns”(Para uma melhor distribuição da terra. O desafio da reforma agrária, documento do Vaticano, 22).

2. Partilha da terra entre as tribos.
Deus escolheu um povo para realizar seu plano original em relação a terra  no sentido de ser um dom para todos. Esse povo vivia no Egito, país estrangeiro, sem terra e sob uma dura escravidão. Deus decidiu libertar esse povo do Faro do Egito e o conduziu, sob a liderança de Moisés, até próximo da terra prometida. Esta foi conquistada pelo povo de Deus através da liderança de Josué que recebeu de Deus a ordem de repartir, de forma igualitária, a terra entre as doze tribos de Israel. “Tu somente tens que repartir a terra por herança aos filhos de Israel, conforme te ordenei” (Jos 13, 6b). Josué repartiu a terra (Jos 18, 10). Desse modo, todo israelita tinha a sua terra. Por ser de Deus, a terra estava sob a administração de cada família. E ela não podia ser vendida. “A terra não poderá ser vendida para sempre porque a terra me pertence, e vocês são para mim imigrantes e hóspedes” (Lv 25, 23). Essa compreensão bíblica da terra deixa duas mensagens importantes. A primeira, não é lícito privar do uso da terra a ninguém, pois viola um direito divino de usar da terra. A segunda, não é justa toda e qualquer forma de posse absoluta e arbitrária da terra para vantagem própria.

3. Reação de Deus mediante a concentração da terra.
Com o passar do tempo foi violado o plano original de Deus de garantir um pedaço de terra para todos. Por isso, o Povo de Deus elaborou várias leis para garantir o direto à propriedade da terra para todos os seus filhos (Lv 19, 23-25; 19, 9-10; 23, 22; Dt 24, 19-22). Além disso, com o mesmo intuito foram instituídos o ano sabático (de 7 em 7 anos) e o ano jubilar (de 50 em 50 anos) que tinham a finalidade de restabelecer o plano original de Deus referente à terra: os sem-terra recebiam de volta sua propriedade; os escravos, por causa de suas dívidas, eram libertados e a terra recebia um tempo de descanso.Ninguém sabe, ao certo, se isso funcionou. No entanto, esses dispositivos elaborados pelo Povo de Deus deixam uma forte mensagem: ninguém é dono da terra, nem das pessoas. E a terra precisa de descanso para recuperar-se.
Os profetas, memória do plano original de Deus sobre a terra, faziam severas críticas aos ricos proprietários, pois eles não respeitavam a vontade de Deus a respeito da  distribuição e do uso da terra. “Aí de vós que ajuntais casas e mais casas, e que acrescentais campos e campos” (Is, 5, 8; Mq 2, 2).

4. Jesus e os bens materiais.
Jesus recebeu de seu Pai a missão de proporcionar vida em abundância para todos (Jo 10, 10). Nela os pobres são privilegiados (Lc 4, 14-21). A vida em abundância tem uma dimensão pessoal que inclui a fé e a conversão (exige partilha de bens: caso de Zaqueu) ao Evangelho (Mc 1, 15) e uma dimensão social que liberta da doença, da fome e da exclusão social (Lc 4, 1ss; 6, 20-26; Mt 25, 41ss). Na dimensão social está incluída também a denúncia profética de Jesus contra a lei religiosa que não leva em conta a justiça e a misericórdia (Mt 23, 23); contra o poder usado para dominar e explorar  (Mc 10, 41-45); contra os ricos que excluem Deus e o próximo de seu programa de vida pessoal e social (Mt 19, 23; 13, 22; Lc 16, 19-31). 
A mensagem de Jesus sobre os bens materiais, a partir de sua vida e de sua missão, é bem clara: eles só têm sentido, na medida em que estiverem a serviço da vida de todos, de modo preferencial, a serviço da vida dos pobres e excluídos.

5. Partilha dos bens nas primeiras comunidades.
Um dos elementos essenciais das primeiras comunidades é a partilha de bens. Isso fica bem claro nos três relatos da Igreja descritos nos Atos dos Apóstolos (2, 42-47; 4, 32-37; 5, 12-16). “... vendiam suas propriedades e seus bens e, repartiam o dinheiro entre todos, conforme a necessidade de cada um”; “... mas tudo era posto em comum entre eles”; “... entre eles ninguém passava necessidade”. Esse jeito de partilhar os bens, apresentado por Lucas, não é uma utopia que ele inventou. Ela tinha uma base experimental. Alguns ricos como Barnabé e outros praticaram a partilha de bens. E isso é uma novidade absoluta na história da humanidade.

III. A função social da propriedade da terra no Ensino Social da Igreja.

1. O princípio da destinação universal dos bens.
O ponto de partida da Igreja para indicar a correta relação do ser humano com a propriedade dos bens da terra está fundamentado no princípio da destinação universal dos bens. Ele tem sua base de sustentação na Bíblia. Nela a terra é concebida como dom de Deus para todos. Daí provém o princípio da destinação universal dos bens. A Igreja o descreve da seguinte forma: “Deus destinou a terra, com tudo o que ela contém, para o uso de todos os homens e povos, de tal modo que os bens criados devem bastar a todos, com equidade, sob as regras da justiça, inseparável da caridade. Por isso, deve-se atender sempre a esta destinação universal dos bens” (GS, 69).
O princípio da destinação universal dos bens se concretiza através de dois direitos básicos para a realização da dignidade humana.
a) Direito ao uso dos bens terrenos.
Todo ser humano tem direito a usar dos bens terrenos para realizar sua vocação de viver de forma digna, isto é, de ter os bens necessários para viver. Isso faz parte de “um direito natural, primário, de valor universal, enquanto compete a cada ser humano e não pode ser violado por nenhum outro direito de conteúdo econômico; dever-se-á antes proteger e tornar efetivo por meio de leis e instituições”(28 c).
b) Direito natural à propriedade particular.
O Ensino Social da Igreja defende que o princípio da destinação universal dos bens se realiza através do direito à propriedade particular da terra. Por isso, a Igreja afirma que todos devem ter o acesso a propriedade particular. “A propriedade particular, de fato, quaisquer que sejam as formas concretas das suas instituições e de suas normas jurídicas, é, na sua essência, um instrumento para a realização do princípio da destinação universal dos bens, portanto um meio e não um fim” (30a).
Além disso, a propriedade particular possibilita a realização da liberdade e da autonomia do ser humano, enquanto faculdades fundamentais de sua dignidade humana. “A propriedade particular ou algum domínio sobre os bens exteriores confere a cada um uma extensão absolutamente necessária à autonomia pessoal e familiar, e devem ser consideradas como um prolongamento da liberdade humana. Enfim, porque aumenta o estímulo no desempenho do trabalho e das responsabilidades, constituem uma das condições das liberdades civis” (29c).

2. Sentido da função social da propriedade da terra.
Se de um lado a propriedade particular é um meio de realizar o princípio da destinação universal dos bens, por outro lado, em vista do mesmo princípio, sobre ela recai uma função social: “os bens deste mundo são destinados a todos. O direito da propriedade é válido e necessário, mas não anula o valor de tal princípio. Sobre a propriedade pesa uma hipoteca social, quer dizer, nela é reconhecida, como qualidade intrínseca, uma função social, fundada e justificada precisamente pelo princípio da destinação universal dos bens” (SRS 42).
Nesse sentido, a propriedade particular não é absoluta, pois não pode estar a serviço exclusivo de seu proprietário, mas também a serviço de toda a sociedade (30c). Por isso, a Igreja defende que toda propriedade privada está de certo modo, penhorada, gravada pelo compromisso de sua destinação social (IPT 80). Em outras palavras, ela “é antes de tudo, um poder de gestão e administração, que, embora não exclua o domínio, não o torna absoluto nem ilimitado. Deve ser fonte de liberdade para todos, nunca de dominação nem de privilégios. É um dever grave e urgente fazê-lo retornar à sua finalidade primeira” (P 492).
Essa noção de propriedade se afasta daquela adotada pelos proprietários. “O meu é para mim”. A equação parece lógica. Na verdade ela é falsa. Na doutrina da Igreja, a propriedade não se define pela alocação, mas pela responsabilidade. Não é direito de usar e gozar, mas o direito estável de decidir a respeito dos bens a cada um confiados, sempre respeitando seu destino comum, bem como as leis e decisão públicas que garantem esse uso comum”(Fé e compromisso social. p. 236).

3. Aplicação prática da função social da propriedade.
a) Legítima ocupação de terras alheias.
Em vista de sua função social, a propriedade particular tem limite. “O limite ao direito de propriedade particular é posto pelo direito de cada ser humano ao uso dos bens necessários para viver” (31 a). Essa doutrina da Igreja ajuda a avaliar situações limites onde está em jogo a vida dos seres humanos. Nesses casos o Ensino Social da Igreja ensina: “Aquele que se encontra em necessidade extrema tem o direito de procurar o necessário para si junto às riquezas dos outros” (GS 69 a).
Nessa situação se encontram os camponeses expulsos das terras que trabalham sem que tenha recebido a parte dos bens necessários para viver. E os casos de ocupação de terras incultas por parte de camponeses que não são proprietários delas, mas vivem num estado de extrema indigência (31 b).
b) A condenação do latifúndio
O Ensino Social da Igreja condena o latifúndio (‘grande propriedade mal cultivada ou sem cultivo, com fins especulativos’). Ele é ‘ilegítimo’ se analisado à luz da subordinação da propriedade particular ao princípio do destino universal dos bens. “A terra foi dada a todos, ninguém tem o direito de reservar para seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário”(32). “Para a Doutrina Social da Igreja, o latifúndio contrasta nitidamente com o princípio de que ‘a terra foi dada a todos e não apenas aos ricos’ de tal modo que ‘ ninguém tem o direito de reservar para o seu uso exclusivo aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário... O latifúndio, de fato, nega a uma multidão de pessoas o direito de participar, com seu trabalho, no processo produtivo e de satisfazer as necessidades próprias, da família, da comunidade e da nação de que fazem parte” (Para uma melhor distribuição da terra, 32).
c) Condenação da exploração do trabalho agrícola.
O salário é o meio de conseguir os bens necessários para viver. Se ele for insuficiente a dignidade do trabalhador é ofendida. “Formas de exploração do trabalho, especialmente quando ele não é remunerado com salários e outras modalidades que são indignas do ser humano”. E por isso, a pessoa não tem acesso aos bens necessários para viver dignamente (idem 34).

Conclusão.
Deus é o Criador de tudo o que existe. Tudo a Ele pertence. Ao ser humano confiou o cuidado da criação para que todos tenham os bens necessários para viver. E para que a criação possa também sobreviver. Não respeitar isso é ofender o próprio Criador.  

*Frei Flávio Guerra é da Ordem dos Frades Menores e professor na ESTEF

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