quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

De semeaduras, cultivos, colheitas e consagrações

por Andrei Thomaz Oss-Emer*
A vida é feita de semeaduras. A semeadura, é aquele tempo em que a Terra, com seu seio preparado para acolher a vida, recebe as sementes, patrimônio universal dos povos da Terra. A Terra, tudo acolhe, tudo gera, lança a força vitalícia de minerais obtidos pelo processo de decomposição, graças às milhares de vidas que habitam o seio da Terra. Na Terra semeamos, semeamos a esperança, de novos ciclos, cheios de fartura, para matar toda a fome da Terra.
A água, regando o seio fértil da Grande Mãe, a Casa Comum, Pachamamma, Madre Terra, garante a fertilidade do solo Sagrado. O minuano, que corre pelos campos e traz do sul as chuvas de inverno, irriga essas terras, hora quentes, hora geladas. A luz e o calor do Sol, astro Rei, que nos visita diariamente em sua jornada sideral, garante a energia necessária para que o tempo de maturação aconteça. Nada acontece e nada deve acontecer fora de seu ciclo, os ciclos da natureza são formam um elixir homeopático de esperança, no combate à ansiedade provocada por esses tempos pós-modernos.
O ser humano que aprende dos tempos de cultivo, cultivar a esperança, pode estar pronto para acolher os tempos de colheita. A colheita, é parte do processo, pois tudo se colhe, e todos os dias existem momentos de colheita. A biodiversidade nos garante um processo constante de colheitas, algumas maiores, outras menores, todas são o final de um ciclo, e o começo de outro. A espera, para a nova semeadura, o cuidado com a vida no solo que se recompõe, sempre, cotidianamente.
A fartura da colheita, enche a casa de alegria, pois na colheita está o alimento, ele enche a vila de alegria, pois a alegria com a generosidade da mãe Terra, nos abre o coração para a partilha. A colheita representa a Sagrada reverência diante dos frutos da Terra, somente quem cultiva a Terra tem o sagrado direito de colher dos seus frutos. Os frutos colhidos, são consagrados na mesa das famílias, que são solidárias na partilha dos frutos da Terra, não como quem os consome, mas como quem os comunga, e com eles comunga com a Terra e com os Filhos da Terra. A Terra, enquanto casa de toda a vida, é de si mesma, e por si mesma gera toda a vida que se organiza em sua atmosfera. O Cuidar da Terra perpassa todas as dimensões humanas, cuidando da Terra, a Terra nos cuida, assim como cuida dos sagrados tempos de semeaduras, cultivos, colheitas e consagrações.  
*Andrei Thomaz Oss-Emer é Bacharel em Filosofia Pela Universidade Federal de Pelotas. Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal de Pelotas. Educador na Escola São Francisco de Assis – Pelotas-RS – Rede SCALIFRA-ZN. Colaborar da Comissão Pastoral da Terra/ RS. 
 Foto - arquivo CPT/RS 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

No coração do latifúndio gaúcho, trabalhadores celebram a terra e o herói indígena Sepé Tiaraju

Concentração de cerca de 12 mil pessoas ocorreu na Romaria da Terra, em São Gabriel, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul.
Foto: Leandro Molina
10 de fevereiro de 2016 19h39
Por Catiana de Medeiros - Da Página do MST

“Este é um momento de reflexão, oração e agradecimento por tudo o que a terra nos dá. É onde viemos buscar novas forças e renovar nossa fé para seguir produzindo e trabalhando no campo, porque a luta pela vida e a terra é diária e eterna”, explicou a assentada da reforma agrária Adriana de Almeida, 39 anos, enquanto acompanhava romeiros e romeiras na caminhada da 39ª Romaria da Terra.

O evento aconteceu na nesta terça-feira (9), em São Gabriel, na Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, região conhecia como o coração do latifúndio gaúcho, que tem em sua marca a monocultura de soja transgênica e o uso abusivo de agrotóxicos. Mas São Gabriel também tem histórias de luta e resistência: é onde as forças da segurança do Estado matou o Sem Terra Elton Brum da Silva, em 2009, durante reintegração de posse da Fazenda Southall. Hoje, o município conta com oito assentamentos e abriga 700 famílias Sem Terra que produzem arroz agroecológico e outros alimentos livres de venenos.

Foi em São Gabriel que também tombou o herói indígena Sepé Tiaraju e seus 1,5 mil companheiros que lutavam em defesa da terra, do seu povo e de uma vida pacífica em seu território. Esta edição da romaria, organizada pela Comissão da Pastoral da Terra (CPT-RS) com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), Diocese de Bagé e Conselho Indigenista Missionário (Cimi), provocou a reflexão sobre os 260 anos do martírio, completados no dia 7 de fevereiro.


Na caminhada, cerca de 12 mil trabalhadores do campo e da cidade fizeram suas orações e acompanharam o legado deixado por Sepé e os indígenas massacrados. Ela iniciou na Sanga da Bica, no Centro da cidade, onde o herói foi morto, e encerrou no Parque Tradicionalista Municipal.

Durante o trajeto, ocorreram sete paradas em celebração às reduções jesuíticas: São Francisco de Borja, São Nicolau, São Miguel Arcanjo, São Lourenço Mártir, São João Batista, São Luiz Gonzaga e Santo Ângelo Custódio. Já no parque, romeiros e romeiras participaram de missa celebrada pelo bispo da Diocese de Bagé, Dom Gílio Felício.

Este ano a romaria teve como tema “Cuidar da Terra, Casa Comum”. Conforme Simonne Pegoraro, da coordenação da CPT-RS, além de lembrar o martírio de Sepé, o intuito foi refletir sobre a relação do homem com a terra e o meio ambiente diante da realidade de esgotamento, exploração e violência.


“Temos muito a aprender com os povos indígenas, quilombolas e camponeses, que têm em suas raízes o cuidado e a preservação da terra, e que não a vê como objeto de exploração, mas que se vê como parte dela”, argumentou Simonne.

Demarcação de terras indígenas
Integrando a programação da romaria, entre os dias 5 e 9 de fevereiro, para celebrar a luta de Sepé Tiaraju e discutir a questão indígena no Brasil, cerca de 700 índios Guarani e Kaiowá do RS, São Paulo, Mato Grosso do Sul e Argentina participaram do 10º Encontro do Povo Guarani.

Segundo o cacique Santiago Franco, da Aldeia Yuy Poty, localizada no município de Barra do Ribeiro (RS), o principal tema abordado foi a demarcação de terras no país, o qual corresponde hoje às mais importantes e urgentes bandeiras erguidas pelos indígenas.

“Nossa maior preocupação é com a demarcação do nosso território, que está paralisado por falta de atitude do governo. Nós vivemos com muitas dificuldades e queremos saúde, educação e que o governo reconheça nossa cultura e o direito que temos de viver como brasileiro e de termos liberdade”, disse Santiago.

Atualmente, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem 462 terras indígenas regularizadas, que representam cerca de 12,2% do território nacional. Dados do Censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que 896,9 mil brasileiros se declaram ou se consideram indígenas.

Durante o encontro, foi construído um documento de reivindicações que será entregue à Funai, lideres governamentais do Brasil, Argentina, Paraguai e Bolívia – países onde há grande concentração de territórios Guaranis.

“Pedimos respeito e que possamos viver melhor. Estamos cada vez mais unidos porque o reconhecimento ao valor que nós temos é o nosso grande objetivo”, finalizou Santiago.

Acampamento da Juventude
Ainda em comunhão às temáticas da Romaria da Terra, ocorreu de 7 a 9 de fevereiro, também em São Gabriel, o 11º Acampamento da Juventude. O Evento envolveu desde oficinas, com debates sobre questões de gênero, agroecologia, agitação e propaganda, entre outros temas, até atividades de integração dos jovens do campo e da cidade.

“A nossa juventude tem um vínculo com a terra, mas precisamos cuidar dela, da natureza, da nossa casa comum. E esse compromisso e responsabilidade não é apenas de quem está no campo, mas também dos jovens da cidade”, declarou Liciê Scolari, da coordenação do acampamento.

A juventude ainda acompanhou análise de conjuntura com o coordenador nacional do MST, João Pedro Stedile. Ele levou para o centro do debate as crises econômica, social, ambiental e política do país e motivou os jovens a continuarem a luta por uma sociedade mais justa e igualitária.

“Estamos semeando em terra fértil e tenho certeza que todos vocês vão se tornar militantes da classe trabalhadora, para que o povo, com consciência, possa seguir a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, assim como fez Sepé Tiaraju. Precisamos continuar essa batalha e eliminar todo o tipo de opressão e exclusão”, apontou Stedile.

Extraído da Página do MST (www.mst.org.br)

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

A 39ª Romaria da Terra nos compromete com a vida da Terra e das Águas

Esta 39ª Romaria da Terra nos compromete com a vida da Terra, das Águas e, sobretudo, de todas as vidas que nelas habitam, vida que estão ameaçadas, vidas dos pobres e dos pequenos, em primeiro lugar.
Este compromisso com a responsabilidade social e ambiental tornou-se um refrão incansavelmente repetido e propagandeado na hora da implantação dos grandes projetos. Não vi um Estudo de Impacto Ambiental – EIA que não garantisse tudo isso. Nunca vi um EIA que chegasse, no fim, a desaconselhar a implantação de um grande projeto. Sempre, nas audiências públicas, prova-se que as empresas, além de querer seu lucro, se comprometem com o bem social e a proteção, a preservação ou a recuperação ambiental.
Governos, empresários e ONGs parecem estar todos falando uma mesma língua. A preocupação com a ecologia, com o meio ambiente parece ser, hoje, um fato indiscutível e que deve sempre ser levado em conta. A teologia, a hermenêutica bíblica, a moral, também, entraram com força nesta reflexão que cinqüenta anos atrás, no Concílio, nem mesmo estava em pauta.
O que diz a bíblia das questões ecológicas? Quantas vezes, nestes últimos anos ouvi esta pergunta! E não há como esconder que os textos bíblicos dizem uma coisa e se contradizem logo em seguida, uma vez que provêm de ambientes diferentes, com preocupações e projetos diferentes.
Salomão ofereceu a Javé para o sacrifício pacífico, vinte e duas mil vacas e cento e vinte mil ovelhas (1Rs 8,63). Esta incrível matança de animais acompanhou a inauguração do templo de Jerusalém. Depois vieram os holocaustos quotidianos, os inúmeros sacrifícios de todo tipo, as ofertas e os sacrifícios pelos pecados. Para todos estes sacrifícios os sacerdotes, “porão fogo sobre o altar, ordenando a lenha sobre o fogo”. (Lv 1,7): fogo para queimar incenso, para assar as carnes, para consumir os holocaustos e para cozinhar os “santos dos santos”, as comidas exclusivas dos sacerdotes; fogo que nunca podia se apagar (Lv 6,13). Foi preciso estabelecer um rodízio entre as famílias para o fornecimento da lenha a ser queimada sobre o altar (Ne 10,34). E tudo isto numa região semi-árida como a Judéia, onde até o orvalho era considerado uma bênção de Deus.
Reis e sacerdotes ergueram templos e palácios explorando o trabalho de milhares de pessoas e cortando inúmeras árvores do Líbano. Como todos os poderosos, não tinham nenhuma preocupação com a vida nem da natureza nem das pessoas.
Nesta perspectiva, por exemplo, foi e continua sendo lida a bênção de Deus ao homem e à mulher: Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo o animal que se move sobre a terra. (Gn 1,28)
Uma interpretação literal deste “domínio” justificou a propriedade privada, legitimou uma equivocada centralidade do homem sobre a natureza e embasou, teologicamente, a chamada civilização ocidental/cristã que vem explorando a natureza até sua exaustão.
E a “imagem de Deus”, muitas vezes, tornou-se grileiro de terras, destruidor de florestas, explorador do trabalho escravo e financiador da pistolagem. Um exército devastador e assassino, cuja violência está retratada em todas as páginas da história humana e que nada tem a ver com a mensagem evangélica.
Como saber, então, o que deveria fazer a diferença?
Ecumenismo, economia, ecologia
Trabalhar as palavras pode parecer – e às vezes é – um trabalho inútil dos sabichões. Às vezes vale a pena. Vou tentar ser simples e concreto.
As palavras economia, ecologia e ecumenismo vêm todas da língua grega e se originam do verbo “oikeo”: habitar. O substantivo derivado é “oikoumene”.
Esta palavra foi, logo, entendida como “todo o universo habitado”, “toda a sociedade humana”, “toda a terra”, A esta palavra costuma-se dar uma dimensão universal.  
É, porém, interessante notar que a palavra oikoumene nunca aparece nos textos paulinos. Apesar de sua preocupação universalista Paulo não usa esta palavra. Para entender isso, é preciso considerar o uso político desta palavra que era feito no mundo cultural grego e romano. Para gregos e romanos a palavra oikoumene indicava, quase sempre, as populações que eram conectadas com seu projeto político e comercial. Os bárbaros e os escravos não faziam parte da oikoumene.
Oikoumene que parecia ser uma palavra includente, tinha, na realidade, um forte sentido de exclusão. Uns eram oikoumene e outros não.
Esta ambigüidade justifica a ausência desta palavra nos textos paulinos. Suas afirmações são claras:
Eu sou devedor tanto a gregos como a bárbaros, tanto a sábios como a ignorantes (Rm 1,14)
Não há grego, nem judeu, circuncisão, nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre; mas Cristo é tudo em todos (Cl 3,11).  
O Reino de Deus é uma coisa, a oikoumene é bem outra (ver também, Mt 24,14; Lc 4,5; 21,26): a ela deve ser anunciado o evangelho do Reino.
Temos que dizer que também a palavra kosmos, sobretudo em João, não tem o significado global de mundo, de universo, mas identifica as forças negativas que se contrapõem ao Reino.
É bom lembrar que esta ambiguidade se mantém, também, nos tempos atuais: a palavra ecumenismo – que deveria significar a atitude de encontro e de respeito entre todos os que vivem no mesmo mundo habitado - é quase sempre usada para falar da unidade das igrejas cristãs, excluindo do ecumenismo as demais expressões religiosas. Para estas foi preciso criar a palavra macro-ecumenismo: uma evidente redundância.
Por que fiz toda esta explanação? Porque do verbo oikeo, derivam, também, as palavras oikiaoikos: habitação, casa, residência, lugar habitado, família.
oikoumene é o conjunto das “casas”, de todos os espaços que são habitados. Não há como separar o universal do local.
Precisamos, porém, levar em consideração que casa, também, nunca foi sinônimo dos que habitam nela. Tem o homem e tem a mulher, tem o pai e tem o filho, tem o amo e tem o escravo. As relações internas da casa são determinantes, podem ser igualitárias, segundo diz Paulo:
Não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus (Gl 3,28).  
Ou as relações dentro da casa podem ser de domínio, de governo:
Todos os escravos que estão debaixo do jugo estimem os seus senhores dignos de toda a honra, para que o nome de Deus e a doutrina não sejam blasfemado (1Tm 6,1).
As mulheres idosas (...) ensinem as mulheres novas a serem (...) boas obreiras de casa, submetidas a seus maridos, a fim de que a palavra de Deus não seja blasfemada (Tt 2,3-5).
Quanta diferença entre o homem: dono/patrão da casa (oikodespotes) e a mulher trabalhadora da casa (oikourgous)!
Ecologia vem do grego: oikos = casa e logos = discurso. Diga-se o mesmo da economia que vem de oikos = casa e nomos = lei, norma. É por isso que precisamos definir qual é a nossa “ecologia”.
Ecologia é dizer o que pensamos da nossa casa, como um todo. Quase sempre – e, nisso, empresários e ambientalistas são iguais – se entende ecologia como a nossa relação com a natureza, com o meio ambiente, podemos dizer com o nosso “quintal”. Discute-se o ambiente, discute-se como deve funcionar o quintal, mas não se discute que tipo de casa nós queremos.
Tem muitos ecologistas que, quando pensam em casa, continuam pensando em “casa grande” e em “senzala”. Não pensam numa casa comum, onde todos sentam ao redor da mesma mesa e repartem o mesmo pão, sem distinção.
Eles se preocupam só com o quintal, com a natureza, com o ambiente que está fora da casa e, assim, falam em desenvolvimento sustentável, em defesa da terra e da água, mas continuam sem por em discussão a “casa grande” dos países mais ricos, das classes dominantes, das corporações industriais e financeiras, das elites privilegiadas e corruptas que engordam às custas de uma imensa, incalculável “senzala” que é explorada, oprimida, excluída.
A eterna luta entre Iahweh e o Faraó (a casa grande)
A senzala ainda não saiu da cabeça de muitos. Precisamos nos converter, pois a economia (a lei, a organização, a administração da casa) vai depender da ecologia (de que casa estamos falando, em que tipo de casa queremos viver).
Não vamos esquecer que a palavra faraó significa, literalmente, “casa grande”.
Se continuarmos a acreditar na casa grande, teremos uma economia centrada na especulação financeira, nos monopólios industriais, na privatização dos serviços públicos - realidades que nada teriam a ver com a ecologia. Uma economia baseada no agronegócio, na monocultura, na mineração, nas exportações de matéria prima, no trabalho escravo, na concentração fundiária, nas sementes transgênicas, nos agrotóxicos.
A casa grande ficará com os produtos e os lucros; a senzala ficará com o trabalho e as migalhas da assistência social e o quintal será devastado. Os pobres perderão a terra! A terra perderá a vida!
Tudo depende da maneira de olhar a terra, a água, a natureza: socialistas e capitalistas enxergam tudo isso como matéria prima que adquire seu valor ao virar mercadorias que deve ser comercializada e privatizada, deixando de ser direito e bem coletivo.
Nós queremos olhar a terra, a água, a natureza como a nossa casa, a nossa mãe e fonte de vida para todas as criaturas.
Nós entendemos que a luta pela terra é, hoje de maneira especial, luta pela TERRA, com a T maiúscula. É a luta pela vida do planeta que é violentamente ameaçada por um falso conceito de crescimento, desenvolvimento, progresso e por uma ainda mais falsa ideia de que os recursos naturais são infindáveis.
Aprender com as comunidades indígenas e quilombolas o que significa uma casa feita tenda comum, aberta a todos, não significa atraso. Significa vida abundante para todos e todas.
Lutar pela terra e pela vida da Terra é um imperativo ético que testemunha nossa fidelidade à memória, à tradição, à ancestralidade, às nossas raízes. É nossa fidelidade aos pobres de Deus.
Lutar pela terra e pela vida da Terra é uma exigência que testemunha nossa relação sagrada com a terra, nossa mãe, nossa amiga, nossa amante, à qual devemos “servir” e “obedecer”[1] pois dela todas as gerações terão vida em abundância. É nossa fidelidade à terra de Deus e de todos e todas nós.
Lutar pela terra e pela vida da Terra é uma obrigação que testemunha a fé no nosso Deus. Da ecologia, depende não só a economia, mas, também, a teologia. A casa que pensamos e queremos determina qual é o Deus ao qual nossa casa deve ser fiel. É nossa fidelidade ao Deus dos pobres.
Este testemunho de fidelidade ao Deus dos pobres, aos pobres de Deus e a terra que é de Deus e de todos, levou inúmeras companheiras e companheiros a amar até o fim, até derramar seu sangue. São os mártires/testemunhas que as igrejas nunca devem esquecer. Entre eles, celebramos a memória de São Sepé Tiarajú.  
A “casa grande” em nossas cabeças e em nossos corações
Ao lutarmos com dedicação pela vida da TERRA, precisamos, no mesmo tempo, cuidar de alimentar uma mística adulta e sólida que nos ajude, não só a derrotar o faraó que nos oprime, mas, também, a vencer o “faraozinho” que carregamos dentro de nós e de nossas organizações e contra o qual ninguém foi ainda vacinado.
Os movimentos e as organizações populares, às vezes se deixam levar na conversa dos interesses partidários; muitas lideranças, também, acabam aceitando, como inevitáveis, os esquemas de corrupção, disputam ferozmente cargos de confiança e acreditam, simplesmente, que a maneira de sair da senzala é entrar a fazer parte da casa grande. “Agora chegou a nossa vez” dizem.
Nossas igrejas, muitas vezes, seguiram e seguem a lógica da casa grande e da senzala que deturpou nossas relações: templos, altares, sacrifícios, hierarquias, governos são coisa da casa grande, de um sacro-negócio blasfemo e diabólico, o mesmo que, aliado ao império opressor, condenou à morte Jesus de Nazaré.
O evangelho do Reino de Deus nos convida a fazer a diferença dentro e fora da igreja: casa, mesa, pão repartido e serviço devem substituir templos, altares, sacrifícios e dominações. Foi isso que Jesus celebrou na ceia. É isso que devemos continuar testemunhando em memória dele e de seu martírio.
Pão repartido quer dizer terra repartida, bens partilhados, luta contra toda concentração, contra o latifúndio excludente, devastador e violento. É a defesa da vida contra todas as formas de escravidão, mesmo as que são mascaradas de crescimento e são chamadas de mercado.
Pão repartido é crer que nossa casa é uma oca comum ou, usando a linguagem bíblica, uma “tenda”. Nem palácios, nem templos, nem quartéis, nem armazéns, nem bancos, nem especulações financeiras.
Vamos repetir uma vez mais: a palavra faraó significa “casa grande”.
O nosso Deus, o Deus dos nossos pais e das nossas mães, o/s deus/es dos nossos povos ancestrais nunca estará na casa grande, apesar dos templos gigantescos que eles construíram e continuarão construindo.
Iahweh será sempre o Deus dos hebreus, dos marginalizados que só querem viver em paz, podendo desfrutar do fruto da terra e do seu trabalho, do pão e do vinho que ofertamos ao Senhor para que seja sempre de todos e de todas.
Ecologia e Reino de Deus
Mesmo sabendo que os textos bíblicos nunca usam a palavra ecologia que nem está no dicionário grego e mesmo sabendo que a palavra reino parece ser tão obsoleta em nossos tempos considerados democráticos, precisamos aprofundar mais um pouco o que é o centro do anúncio de Jesus: O tempo se completou e chegou o reino de Deus, mudai de pensamento e acreditai no evangelho (Mc 1,15).
A justiça do Reino que deve ser procurada em primeiro lugar (Mt 6,33) é uma proposta clara, uma proposta cuja vivência levou Jesus à perseguição e ao martírio.
A vida dos pequenininhos deve estar sempre em primeiro lugar. Ela vale mais do que a lei, mais do que o templo, mais do que os interesses do mercado e do império.
A lógica econômica é aquela da mesa, do dividir, dar e distribuir e não aquela do mercado, do comprar e vender.
As relações políticas estão marcadas pelo serviço e pelo dar a vida e não pelo domínio e pela opressão.
Esta é a casa que Jesus quis edificar: uma casa muito diferente do palácio de Herodes, do quartel de Pilatos, da sinagoga dos escribas e do templo dos sumos sacerdotes.
Uma casa onde encontram a cura a sogra de Pedro, o criado do centurião, a filha da mulher siro-fenícia; uma casa destelhada para que o paralítico possa ser descido até diante de Jesus. Uma casa onde Jesus come com os publicanos e os pecadores; uma casa onde Jesus "acorda" a menina de doze anos, e manda dar-lhe de comer.
Uma casa na qual a família não é constituída por vínculos de sangue: irmãos, irmãs e mãe de Jesus são todos e todas que sentam ao redor dele e fazem a vontade do Pai. Uma casa na qual o profeta não é honrado pelos seus (Mc 6,4).
É a casa onde Jesus desafia os discípulos colocando-os diante de um menino: quem quiser ser o primeiro seja o último e o escravo de todos. A casa onde Jesus provoca os discípulos a colocar os direitos das mulheres na frente dos deles.
É a casa de Simão, o leproso, onde a unção de uma anônima mulher o consagra e lhe dá a coragem de enfrentar a morte: único evangelho a ser anunciado em todos os lugares da terra, em memória dela: aos pobres terão que fazer o bem.
É a casa indicada pelo escravo, carregador de água, na qual o grupo de Jesus celebrará a sua Páscoa: o memorial vivo de Jesus que substituiu definitivamente o templo com a casa, substituiu o altar com a mesa e substituiu os sacrifícios com o pão e o vinho repartidos entre todos.
Uma casa e uma mesa na qual Jesus está como aquele que serve, como aquele que lava os pés.
Uma casa, uma mesa, na qual Jesus poderá ser reconhecido ao partir o pão.
E, por fim, uma casa, Betânia, a casa dos oprimidos, o último lugar onde Jesus vai conduzir seus discípulos antes de ser elevado ao céu.
Esta é a “ecologia” do Reino: o discurso/logos que os evangelhos fazem sobre a casa/oikos.
A economia a serviço da casa
A economia, as leis da casa, a administração da casa é o compromisso de ajudar a viver conforme o projeto de casa na qual queremos viver. É impossível separar a economia da ecologia. Quem faz isso precisa reduzir a ecologia a uma relação mais ou menos sustentável com o quintal.
Aí a casa deixa de ser o referencial. O referencial último e definitivo é o mercado. E, no nome dele e na obediência a ele, tudo é justificado ou justificável.
É aqui que nós, os que, com a força do Espírito Santo, queremos ser discípulos e missionários de Jesus, precisamos fazer a diferença.  Temos que ter claro que quando denunciamos e combatemos o desmatamento, o agronegócio, os agrotóxicos, o latifúndio, a contaminação, a mineração colonialista, a pesca predatória, as barragens, o trabalho escravo, as megalópolis estressantes, a violência, o narcotráfico, a corrupção do estado, em todos os seus poderes, o fazemos movidos por profundas razões místicas: porque acreditamos firmemente que em toda a criação circula uma única vida, a vida de Jesus:
Ele é a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis (...). Tudo foi criado por ele e para ele.  Ele existe antes de todas as coisas e todas as coisas subsistem por ele (Cl 1, 15-17).
Este projeto cósmico universal que envolve tudo o que existe a partir de uma única vida é a oikoumene que nós queremos, na qual habitamos e que queremos fortalecer.
Querer que ao nome de Jesus se dobre todo o joelho dos que estão nos céus, na terra e debaixo da terra e que toda a língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor (Fl 2,10s) é viver numa só casa, é o ecumenismo que move nossas relações.
Pôr-se a serviço de todas e de todos, para que todas e todos tenham vida e a tenham em abundância, sem nenhuma exclusão de religião, de bandeira, de raça, de classe, porque o único senhor diante do qual queremos nos ajoelhar é a ecologia que queremos defender e testemunhar com toda a nossa vida: é a casa em que queremos nos encontrar.
Olhar para os pássaros do céu, para as flores do campo, não nos deixando enganar pelos armazéns e pelas roupas suntuosas dos magnatas dos bancos, das indústrias, da mineração, do agro e do hidro-negócio, da corrupção é nosso maior critério de economia:
Ninguém pode servir a dois senhores; porque ou há de odiar um e amar o outro ou se dedicará a um e desprezará o outro. Não podeis servir a Deus e a Mamom (...). Não andeis, pois, angustiados, dizendo: Que comeremos ou que beberemos ou com que nos vestiremos? Porque todas estas coisas as nações procuram. O vosso Pai celestial bem sabe que necessitais de todas estas coisas; buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça e todas estas coisas vos serão acrescentadas. (Mt 6,24, 31-33)   
Parecem palavras de um louco, palavras que poucos levaram a sério em 20 séculos de história. Palavras que nações e igrejas, muitas vezes, esqueceram.
Que esta nossa Romaria seja marcada pela renovação do nosso compromisso com a ecologia da Terra sem Males.




[1] Esta é a tradução literal dos verbos que estão em Gênesis 2,15 e que nossas bíblias costumam traduzir com “cultivar” e “cuidar”.
Sandro Gallazzi