segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Entrevista especial com Olívio Dutra sobre a Romaria da Terra


Romaria da Terra e a promoção da cidadania constante. Entrevista especial com Olívio Dutra

“A Romaria da Terra promove a cidadania constante, permanente, solidária, ativa, transformadora”, afirma o ex-governador do Rio Grande do Sul.

Confira a entrevista publicada pelo IHU On-Line da Unisinos, quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Na terça-feira de carnaval, dia 12 de fevereiro de 2013, irá acontecer a 36ª Romaria da Terra, na Comunidade Bom Pastor, em Bento Gonçalves, na Diocese de Caxias do Sul. O tema deste ano é “Terra e Cidadania: Princípios do Bem Viver”. Um dos participantes mais antigos e engajados é o sindicalista e político gaúcho Olívio Dutra, que afirma participar das romarias antes de ter qualquer cargo público de importância. “Participo como militante social, popular, comunitário, sindical e como originário de uma família de sem-terra que saiu do campo e veio para a cidade. Por tudo isso eu me sinto muito envolvido de coração e de consciência com um movimento baseado na fé, na esperança, na solidariedade e que também propõe mudanças na política econômica e, particularmente, na política agrícola e agrária”, disse, na entrevista que aceitou conceder à IHU On-Line por telefone.
Olívio destaca a importância dos partidos políticos, mas reitera que o movimento Romaria da Terra é independente de favores ou de benesses oficiais ou oficiosas. “O movimento tem força própria e é, portanto, sujeito desse processo. Nesse sentido, ele estimula, instiga e provoca a cidadania constante, para que as pessoas não sejam cidadãs somente na hora de votar, quando tem eleição, ou para eleger alguém conhecido seu, familiar ou amigo. Não. A cidadania é algo do cotidiano das nossas vidas”.

Olívio de Oliveira Dutra (foto) foi prefeito de Porto Alegre (1989 a 1993), governador do Rio Grande do Sul (1999 a 2003) e ministro das Cidades (2003 a 2005) no primeiro mandato do governo Lula. Formado em Letras, foi funcionário concursado do Banrisul, banco estatal gaúcho. Nessa condição, começa a militar no Sindicato dos Bancários de Porto Alegre, e chega à presidência da entidade em 1975. Comandou a greve geral do funcionalismo público de setembro de 1979, motivo pelo qual foi preso pelo regime militar e perdeu seu mandato sindical. No contexto da redemocratização brasileira, participou da fundação da seção gaúcha do Partido dos Trabalhadores, da qual foi presidente de 1980 a 1986. Atualmente, preside o diretório gaúcho do PT.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, qual a importância da Romaria da Terra enquanto uma promoção que aborda a agricultura familiar, o cooperativismo e o consumo consciente?

Olívio Dutra – Em primeiro lugar, é preciso dizer que ela tem um caráter de fé, de religiosidade, que são coisas muito enraizadas na cultura do nosso povo, em particular das pequenas comunidades, da agricultura de economia familiar, ligada à base da Igreja Católica, mas também com participação de outras manifestações religiosas. A Romaria da Terra envolve igualmente a cultura dos índios, dos negros e de outras etnias que têm a ver com a produção de alimentos, o trato com a terra e a vida no seu sentido mais amplo. Então, as romarias são um chamamento constante a essa relação consciente do homem consigo mesmo, com o valor da comunidade, da organização a partir da família, da movimentação solidária, da caminhada em busca de uma terra sem males, que, por sinal, é também da cultura indígena, guarani.
Agora, a romaria envolve também a questão da segurança alimentar, da produção de alimentos para a vida e não para a morte. É preciso dizer sim ao desenvolvimento de uma tecnologia que possibilite a produção de mais alimentos sadios, sem uso de agrotóxicos e de veneno, para garantir alimentos fartos e sadios na mesa de todos, no campo e na cidade, e que o agricultor, a agricultura e sua família possam viver dignamente na condição de agricultores.

IHU On-Line – Há quantas edições o senhor participa? O que lhe motiva a se engajar neste projeto?

Olívio Dutra – Eu sou um romeiro antigo e não deixo de participar de nenhuma das romarias, onde quer que ela se realize, a não ser em alguma situação excepcional. Eu participo das romarias antes de ter qualquer cargo público de importância, mas como militante social, popular, comunitário, sindical e como originário de uma família de sem-terra que saiu do campo e veio para a cidade sobreviver com a atividade de carpinteiro, como foi meu pai, e de doméstica, como minha mãe, para criar cinco filhos. Por tudo isso eu me sinto muito envolvido de coração e de consciência com um movimento baseado na fé, na esperança, na solidariedade e que também propõe mudanças na política econômica e, particularmente, na política agrícola e agrária. Nós ainda andamos atrás de uma reforma agrária efetiva neste país, para o desenvolvimento mais parelho, desconcentrado, descentralizado do Brasil, com enormes áreas sendo apropriadas por grupos empresariais, inclusive estrangeiros, enquanto temos milhares de famílias de trabalhadores acampados naqueles corredores ou na frente desses enormes latifúndios que produzem bens para exportação com muito uso de agrotóxico e pequeno número de mão de obra.
Então, é preciso mexer em tudo isso e as romarias buscam essa reflexão, estimulam, instigam e provocam essa conscientização. E, evidentemente, querem que a voz de milhares de pessoas chegue às autoridades em todos os níveis: municipal, estadual, federal, executivo, legislativo, judiciário. Mas é preciso que seja a voz da sociedade, do povo que se mobiliza, se organiza e que caminha na busca dos seus direitos, sempre na visão social de garantir – num mundo que tem carências de tanta coisa – que não haja carência de fé, de esperança. Tudo isso vem do povo que também tem um amor enorme pela terra e pelo que ela produz, além do amor pelo conhecimento, pelo saber adquirido por meio da experiência, o saber que a escola, a universidade, a pesquisa, a extensão rural trazem para facilitar a vida da agricultura de economia familiar.

IHU On-Line – Há alguma edição que mais lhe marcou?

Olívio Dutra – Todas são marcantes, porque encontramos muitas pessoas que vêm de diferentes situações, origens, experiências e todas elas nos ensinam, nos enriquecem. Vejo figuras das pastorais, que são pessoas importantes, humildes, modestas, que se desenvolveram na vida do ponto de vista de melhorar sua renda, suas condições de trabalho, de moradia, e que não desistiram de continuar na luta, ou seja, que não estavam na luta em benefício próprio, mas porque entendem que o bem tem que ser para a maioria, já que não é possível que seja para todos, que é o sonho de todos nós que queremos um mundo de igualdade, de justiça. Onde quer que haja injustiça e carência, o ser humano está sofrendo. Portanto, é preciso que haja um movimento que irradie esperança de que as coisas mudem para melhor.

IHU On-Line – Qual a importância das romarias para que os participantes sejam sujeitos da política e construtores da história?

Olívio Dutra – A romaria é um processo que não tem dono, nem uma igreja ou credo. Todas as edições são precedidas de muitos encontros comunitários, nas comunidades distantes, nas periferias das cidades, nos bairros, igrejas, escolas, em diferentes situações onde as pessoas se reúnem para discutir como, juntos e solidariamente, transformar para melhor a realidade como um todo. Tanto que podemos sonhar com um mundo que não é este em que estamos sofrendo, baseado nas leis do lucro, dos mais fortes e importantes se sobrepondo aos interesses comunitários, pequenos, mas sim um mundo com igualdade, fraternidade e solidariedade, com um desenvolvimento ecologicamente sustentável, economicamente viável e socialmente justo. Para isso, todos nós temos que ser sujeitos e não objetos da política. Os partidos políticos são muito importantes, tanto que aqui aparece a necessidade de uma reforma política para que os partidos não sejam balcões de negócios. Mas os partidos possuem as suas atividades, não são eles que dirigem as romarias. Eles são parte, são também sujeitos nesse processo de construir solidariamente essa caminhada que se renova a cada edição da Romaria da Terra.
Esperamos que o governo federal – e eu tenho certeza que a presidente Dilma terá sempre uma atenção especial para o povo que se movimenta – e que o Tarso Genro, no governo do estado, deem atenção e tenham interesse e disposição para isso. Mas o movimento, independentemente se governos federais, estaduais ou municipais façam ou deixem de fazer, possam ou não fazer, não depende de favores ou de benesses oficiais ou oficiosas. O movimento tem força própria e é, portanto, sujeito desse processo. Nesse sentido, ele estimula, instiga e provoca a cidadania constante, para que as pessoas não sejam cidadãs somente na hora de votar, quando tem eleição, ou para eleger alguém conhecido seu, familiar ou amigo. Não. A cidadania é algo do cotidiano das nossas vidas. O ser humano não se realiza na plenitude da sua missão se não for cidadão todos os dias da sua existência. Então a Romaria da Terra promove a cidadania constante, permanente, solidária, ativa, transformadora.

IHU On-Line – É interessante o casamento que a Romaria promove entre fé e política...

Olívio Dutra – É verdade. É importante que se tenha isso. E não estamos falando aqui de fé nesta ou naquela religião, mas uma fé no ser humano e na transcendência, nas possibilidades enormes que o ser humano tem de ser solidário, organizado, participativo, cidadão, ao ser sujeito dessa transformação.

(Por Graziela Wolfart)