por Jacques Távora Alfonsin
Todos os anos, durante a quaresma, a comunidade cristã de todo o Brasil é convidada pela CNBB a participar de estudos e mobilizações planejadas e executadas, num espírito e fraternidade, para enfrentar problemas que afligem diretamente a vida do povo, especialmente a do mais pobre. Em 2015 o objetivo geral desta campanha é o de “Aprofundar, à luz do evangelho, o diálogo e a colaboração entre a Igreja e a sociedade, propostos pelo Concilio Ecumênico Vaticano II, como serviço ao povo brasileiro, para a edificação do Reino de Deus.”
O lema inspirador desse objetivo foi retirado do evangelho de Marcos, quando ele transcreve parte de um pronunciamento de Jesus Cristo: “Eu vim para servir”. Isolada do seu contexto, essa expressão pode ser entendida apenas como um ideal de disponibilidade, generosidade, bondade e desprendimento, típicos sinais de espiritualidade e religião. Acontece que ela está inserida num diálogo mantido por Jesus Cristo com dois dos seus seguidores (Tiago e João) que, por sempre ouvirem Jesus Cristo falar do Reino de Deus, pretendiam se habilitar às vantagens características de todo o exercício próprio do poder de um reino, ficar junto do rei e dominar.
Foram severamente repreendidos na frente de outros apóstolos chamados a ouvir a mesma coisa: “Sabeis que os que parecem dominar as nações as oprimem e os grandes as tiranizam. Entre vós, porém, não deve ser assim. Ao contrário, quem de vós quiser ser grande seja vosso servidor e quem quiser ser o primeiro seja o escravo de todos. Pois também o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate de muitos.”
Mesmo para quem não tem fé nem religião, o forte componente político desse discurso é suficiente para gerar dois efeitos atuais e revolucionários: o primeiro ataca diretamente, com poucas exceções, o poder da disputa encarniçada dos representantes de partidos políticos – cujos programas nunca esquecem de mencionar seus méritos em servir o povo – por dominar o que puder ser dominado, independentemente de qualquer escrúpulo ético, valendo tudo para isso, até as alianças mais espúrias, em nome da chamada “governabilidade”. O segundo é capaz de mobilizar as vítimas do mau exercício do poder-dominação político, para mudar esse modelo, desvelar a insinceridade dos seus programas, organizar-se em defesa de gente oprimida e reprimida, sem concessões a qualquer sistema sócio econômico e político que mascare sua dominação material com um arsenal de leis formais, sem nenhuma garantia para direitos sociais.
Para ilustrar o texto base da campanha, publicado pela editora Paulinas ele traz na capa uma foto do Papa Francisco lavando e beijando os pés de uma pessoa, como fez Jesus Cristo antes da sua última ceia com as/os suas/seus apóstolas/os. À profunda humildade do gesto corresponde a grandeza da fraternidade reverente dedicada à/o próxima/o necessitada/o e pobre.
Frente a um sistema de convivência como o do capitalismo atual, onde o que mais se entende como virtude é vencer, competir, passar as/os outras/os para trás e, se for preciso, enganar as outras pessoas, explorá-las para acumular dinheiro, esse gesto de Jesus Cristo, de puro poder-serviço, parece insano e humilhante.
Bem examinadas as finalidades do Estado, entretanto, da sua administração, de todas as leis e de todas as sentenças, não será somente para o serviço devido ao povo que tudo isso é montado, dirigido e julgado? Por que, então, esse tipo de poder se perverte em poder político de dominação, opressão e, muito frequentemente, pura repressão?
A campanha da fraternidade procura dar respostas a essas questões em plano prático, mostrando como o exercício da autoridade pública e o do poder econômico privado só podem acentuar as injustiças sociais que afligem o povo na medida em que exercem suas funções a serviço, é verdade, mas a serviço de si próprias, quando a soberba e o gosto da dominação e da exploração das/os outras/os domina todo o pensar, o sentir e o fazer desse delírio megalomaníaco.
A leitura de algumas exigências sociais clamando ontem e hoje por enfrentamento, atendimento e solução, indicadas na campanha, denunciam necessidades sociais há muito carentes de atenção e satisfação prioritária, mas relegadas ao esquecimento pelas pressões de não se abandonar a guarita vigilante sobre os avanços que as/os adversárias/os políticas/os estejam fazendo para conquistar qualquer pedaço do poder:
“A melhoria das condições de vida dos brasileiros ainda não se traduziu em melhorias nas condições estruturais de vida da população, sobretudo dos necessitados. Nesse sentido, é oportuno lembrar: a luta pela reforma agrária e as condições de trabalho no campo; as relações de trabalho que compreendem o salário justo e o emprego decente; o acesso à moradia. No caso dos indígenas, é urgente a demarcação dos territórios e a mediação nos locais onde existem agricultores que possuem título. No caso das comunidades quilombolas e comunidades tradicionais, é urgente que o poder executivo demarque os territórios e os proteja da especulação imobiliária. Outra urgência é estabelecer políticas públicas de inclusão social de milhares de excluídos. Estas situações requerem uma ação mais incisiva, pois envolvem situações estruturantes fundamentais do direito à vida e ao reconhecimento da dignidade humana. Além disso, ferem o bem comum e desestabilizam a justiça social, gerando exclusão e violência.”
Com providências reivindicadas com tal urgência, exigindo prontidão de trabalho, prestação de serviço inadiável, satisfação imediata de necessidades vitais do povo, esse não entende como tudo isso é permanentemente prorrogado por força de disputas de poder pelo poder, tão estéreis como a mó do moinho que mói a si mesma.
Embora seja provável que, nos próximos quarenta dias da quaresma, as políticas públicas e privadas de atendimento dessas demandas relembradas pela campanha das fraternidade fiquem todas reféns do que se está apurando na chamada operação lava-jato, uma coisa é certa: sem lavar os pés do povo necessitado e pobre, pelo respeito devido à efetividade dos seus direitos sociais, essa outra higienização poderá até levar muita gente para a cadeia, mas nunca alcançará força para libertá-lo de outra muito mais cruel e permanente, aquela que o mantém preso pela injustiça social contemporânea.
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