sábado, 15 de fevereiro de 2014

Comida saudável só é possível com Agroecologia

Quando nossa barriga ronca é um sinal de fome. Para saciar esta necessidade fisiológica que todos temos nada melhor que uma comida bem gostosa, ao nosso gosto, de acordo com a nossa tradição familiar, cultural e regional. Esta comida que vamos comer quanto mais diversificada for, mais saudável se torna, ainda mais se esta diversidade for ecológica.
Pode até ser que inventem, se é que já não o fizeram, uma pílula artificial de “feijão”, mas esta jamais chegará aos pés do que é o feijão, verdadeiro e produzido lá na terra. Falamos disso por que hoje em dia se inventa de tudo e, no supermercado tem tudo o que você pode imaginar de “comidas” artificiais, que nada tem a ver com nosso organismo, nossa natureza orgânica. Por isso adoecemos facilmente. Quando vamos nos alimentar, digamos comer comida mesmo, é o momento em que estamos ligados diretamente com a natureza, com a mãe terra, e ligados com o homem e a mulher da roça que são os responsáveis por produzir comida em todo o planeta. Daí recordamos como os alimentos são indispensáveis, insubstituíveis e especiais. 
A cada ano, na Romaria da Terra, resgatamos o valor do camponês e da camponesa e sua missão milenar de produzir comida. Somente o agricultor e a agricultora podem fornecer alimentos de qualidade para o mundo.
Alimentos saudáveis são aqueles que não foram produzidos com venenos e nem a partir de sementes transgênicas, sem esquecer de que devem ser naturais e não artificiais. Na agricultura estes alimentos saudáveis e diversificados são produzidos através da agroecologia. Você já ouviu falar em agroecologia?
Para entendermos melhor vamos dividir a palavra: Agro=agricultura - Eco=casa e Logia=estudo. A palavra ecologia é originária do grego (ECO do OIKOS - igual a Casa, LOGIA do LOGOS - igual a estudo). Em resumo, AGROECOLOGIA é fazer agricultura respeitando a grande casa, o planeta, e os moradores desta “grande casa”, ou seja, toda a biodiversidade.

Na Agroecologia, o agricultor e a agricultora são os atores principais!
A agroecologia não é novidade. Desde a existência da agricultura, a mais de 12mil anos, foi somente nos últimos 70 anos que a agricultura passou a ser  mais artificial do que natural e com uso massivo de venenos. Antes era desenvolvida somente com recursos naturais, ecológica e diversificada. Basta conversarmos com os mais idosos e eles nos contam tudo como era.
A primeira questão a deixar claro é que fazer agroecologia não é coisa de atrasado. Ao contrário, o agricultor e a agricultora que produzem no sistema agroecológico são os mais evoluídos que podemos imaginar em termos de produção de alimentos, exatamente por produzir alimentos integrados com o ecossistema, ou seja, respeitando a diversidade de vida existente. Em termos simples e resumidos, a agroecologia é produzir de forma a respeitar o ecossistema, resgatando práticas adotadas há milênios, como guardar sementes todos os anos para plantar novamente, e aprimorando cada vez mais, de forma a evoluir sempre. 

O que será da vida de um agricultor ou agricultora sem a terra? 
O que será desta família com a terra, mas sem as sementes?
A reforma agrária é uma necessidade urgente e atual, primeiro por que cumpre o papel de repartir a terra de forma a mexer nas estruturas, “terra para quem nela trabalha e dela vive”.  O que será da vida de uma família que vive do cultivo da terra se não tem terra? Sem a terra não tem como produzir e viver dignamente. Mas só a terra não basta, embora o acesso a ela seja uma prioridade, precisa ser repartida também as áreas onde existem as melhores reservas de água, que hoje se concentram nas mãos de alguns grupos muito ricos. Não é justo que se assentem famílias em locais com escassez de água, impedindo a vida florir dignamente.
 Além da terra, das estruturas fundamentais de moradia, estruturas de produção,  infraestrutura, saúde e educação tem outro aspecto fundamental nesta luta que são as sementes. O que será de uma família camponesa com terra, mas sem sementes? Precisamos lembrar que sementes crioulas são sinônimas de comida, alimentos, saúde, autonomia, dignidade, fé e cultura. Da terra dependemos para produzir comida para vivermos, mas de que adianta ter a terra, mas depender de sementes caras e que estão nas mãos de algumas empresas?
Por isso reforçamos que uma reforma agrária e uma agricultura preocupada em produzir comida saudável e cuidar dos recursos naturais não é completa enquanto estiver dependente de empresas multinacionais, como se nossa vida estivesse nas mãos delas. Se a nossa produção de comida não estiver sob nosso controle estaremos comprometendo a autonomia e a capacidade de reprodução da vida na roça.  Por isso a luta das sementes é fundamental.

“Agricultura é a Arte de Cultivar o Sol” (antigo provérbio chinês).
Você pode estar se perguntando: como posso fazer agroecologia na minha propriedade? Por onde devo começar? Como posso sair do modelo convencional para a agroecologia?
Algumas dicas importantes:
- Esteja convencido de que quer mesmo partir para a agroecologia. O primeiro passo é fazer agroecologia dentro de nossa cabeça. Costumamos dizer que quando praticamos agroecologia em nossa cabeça, quando estamos convencidos, fazer na terra é muito mais fácil!
- Começar pequeno, ou seja, dando passos curtos, mas bem dados. Não queira transformar sua propriedade da noite para o dia. Comece com uma pequena área e vá aumentando aos poucos. Isso exige planejamento!
- Pense na comida. Comece por aí, garanta alimentos diversificados e saudáveis para sua família em primeiro lugar.
- Reúna vizinhos ou amigos que estão na mesma realidade e pensem juntos. O que podemos fazer juntos ou individualmente? Soltar a criatividade.
- Qual é a minha realidade? Tenho terra ou não, distância da cidade, o que gostamos de fazer. É um exercício importante também para florir as ideias.
- Em geral nossas propriedades têm potenciais, que na maioria das vezes não sabemos como aproveitar; por isso faça o estudo destes potenciais. Por exemplo: os estercos dos animais, se bem aproveitados, são ótimos adubos. O esterco dispensa a compra de adubos químicos na agropecuária. Às vezes o potreiro dos animais ocupa a melhor área de terra, mais fácil de trabalhar por ser plana, e ficamos sofrendo no morro. Quem sabe não seria melhor inverter? Existem tantas outras dicas que podem facilitar o trabalho.
- Assim como seu grupo de amigos ou vizinhos se reúnem para pensar, é bom pensar em amigos na cidade, pois eles precisam de alimentos saudáveis. Que tal criar um grupo de consumidores ecológicos? É uma boa ideia!
- Uma questão fundamental é pensar de onde vêm os alimentos que abastecem nossas cidades. Por que não são produzidos pelos agricultores do município, como para a merenda escolar?
- Buscar apoio técnico de alguém comprometido com a agroecologia e com a causa dos agricultores e agricultoras.
- Procurar envolver a juventude nas ações e proporcionar espaços de estudo e capacitação técnica. Jovens tem força, criatividade e energia, gostam de desafio, e será a garantia de continuidade.
Para fazer agroecologia não há uma receita pronta! Precisamos colocar a cabeça para funcionar. “Sozinhos somos fracos, mas unidos somos fortes”.
Dica ecológica!
Não use milho transgênico. Em alguns lugares se espalhou a ideia de que o agricultor precisa plantar milho transgênico para não ter problemas com as Lagartas do Cartucho e da Espiga. É mentira! Faça controle biológico no milho contra a Lagarta do Cartucho (Spodoptera frugiperda) e da Lagarta da Espiga (Helicoverpa zea). Normalmente esta lagartinha apresenta mais problemas no milho tardio. Para combater a lagarta você pode encomendar nos escritórios da EMATER uma vespinha chamada Trichogramma spp, para o controle biológico. O custo por hectare é baixo e vale a pena!

Equipe de elaboração do Jornal Voz da Terra, da CPT-RS
Página Romaria da Terra

Os frutos da Reforma Agrária no Rio Grande do Sul

Hoje no Rio Grande do Sul existem 327 assentamentos da Reforma Agrária distribuídos em 91 municípios e beneficiando 13.535 famílias. O MST organiza a produção dos assentamentos através de um setor estadual que trabalha com três linhas de produção. Arroz ecológico, leite e produção de sementes. Desenvolve a comercialização da produção através de programas governamentais coordenados pela CONAB com o PAA- Programa de Aquisição de Alimentos e PNAE- Programa Nacional de Assistência Técnica.
Na cadeia produtiva de sementes são envolvidas diretamente 200 famílias. Através da BIONATUR, localizada em Candiota, produziu na ultima safra em torno de 10 toneladas de sementes de hortaliças, 35 toneladas de forrageiras e iniciou a produção de sementes de  feijão e soja orgânica. 
Já a linha de produção do arroz ecológico envolve 407 famílias organizadas em 28 grupos e 4 cooperativas. Produziram na ultima safra 330 mil sacas de arroz. Esta produção é beneficiada e comercializada através de agroindústrias administradas pelas cooperativas de assentados. 
A atividade leiteira sempre foi valorizada pelos assentados. Em torno de 4.400 famílias produzem e comercializam leite nos assentamentos. Com uma produção estadual estimada em 50 milhões de litros/ano.  Das famílias que produzem leite, cerca de duas mil famílias participam das cooperativas e associações do Movimento que atuam nesta cadeia produtiva. 
A comercialização é outro desafio que os assentados procuram enfrentar organizados. A produção das cadeias produtivas é comercializada, em boa parte, através dos programas governamentais de aquisição de alimentos. O MST comercializa através do PAA: Arroz ecológico, feijão, leite em pó e suco de uva. Além desses produtos, em cada região os assentados comercializam hortaliças, mandioca, batata doce, entre outros. As garantem a compra da produção dos assentados evitando a exploração especulativa a que os camponeses estavam sujeitos. 
Na merenda escolar além do arroz, suco e leite há também a comercialização de pães, cucas, biscoitos e geleias. Envolve 850 famílias que produzem para escolas das regiões metropolitanas, fronteira oeste, central, sul e para outros estados como São Paulo e Distrito Federal. Os assentados ainda a comercializam os produtos de forma direta através das feiras de produtos orgânicos. São 5 feiras em Porto Alegre, 4 em Canoas,2  em Eldorado do Sul, 2 feiras em Nova Santa Rita, 1 em Viamão. Na região sul há feiras em Piratini, Pedras Altas, Livramento e Tupã, entre outras.

Equipe de elaboração do Jornal Voz da Terra, da CPT-RS
Página Romaria da Terra

Assentamentos: espaço de vida, trabalho e produção

Uma das nossas principais contribuições para a sociedade brasileira foi cumprir com nosso compromisso em produzir alimentos para o povo brasileiro.  Fruto da organização de mais de 100 cooperativas e mais de 1.900 associações em nossos assentamentos, trabalhamos de forma coletiva para produzir alimentos.
Contribuímos também na construção de 96 agroindústrias, que melhoram a renda e as condições do trabalho no campo.  O assentamento é um espaço em que um conjunto de famílias camponesas vive, trabalham e produzem, dando uma função social à terra e um futuro melhor à população.
A vida no assentamento garante às famílias direitos sociais que não são garantidos a todo o povo brasileiro: casa, escola e  comida. O impacto da criação de um assentamento marca a vida de um município, tanto do ponto de vista social como econômico. Em primeiro lugar, a terra ganha uma função social. Em segundo lugar, um conjunto de famílias ganha instrumentos para a sua sobrevivência.  Depois de um período, constroem a casa, conquistam a escola e começam a produzir.  A produção garante o abastecimento de alimentos aos moradores das pequenas cidades e gera renda às famílias assentadas.
Um bom exemplo dos resultados da Reforma Agrária trata-se da antiga Fazenda Anonni, área de 9 mil hectares que foi  desapropriada em 1986 no Rio Grande do  Sul. Foram assentadas 420 famílias no assentamento da Anonni, que produzem, por ano, cerca de 20 mil sacas de trigo, 13 milhões de litros de leite, 150 mil sacas de soja, 35 mil sacas de milho, 45 toneladas de frutas, 800 cabeças de gado, 5 mil cabeças  de suínos e 10 mil quilos de hortaliças.  Por isso, 23 prefeitos da região norte do estado defendem a desapropriação de fazenda em Coqueiros do Sul, que ocupa 30% da área do município e gera empregos para apenas 15 funcionários temporários, além de ser um símbolo do atraso e da  exclusão. Caso fosse transformada em um assentamento para 450 famílias, poderia gerar no mínimo 950 empregos diretos, desenvolver a produção e movimentar a economia da região. 
A expressão “assentamento” é utilizada para identificar não apenas uma área de terra no âmbito dos processos de Reforma Agrária, destinada à produção agropecuária e ou extrativista. É também um espaço heterogêneo de grupos sociais constituídos por famílias camponesas, que ganha vida depois de desapropriado ou adquirido pelos governos federal ou estaduais, com o fim de cumprirem as disposições legais.  O assentamento representa o desfecho de um determinado processo político-social onde o monopólio da terra e o conflito social são superados e imediatamente inicia-se um outro: a constituição de uma nova organização  econômica, política, social e ambiental com a posse da terra, por uma heterogeneidade social de famílias camponesas. Por isso, deve-se compreender os assentamentos como expressão de um impasse da luta social. 
Por um lado, os assentamentos unem o homem à terra e nela desenvolvem o trabalho com sua família.  Por outro lado, em um contexto de avanço do modelo agroexportador com prioridade à produção em grandes áreas para exportação, os assentamentos ainda não realizam plenamente suas potencialidades. Infelizmente, por conta dos limites das políticas dos governos, os assentamentos não se constituem como expressão de uma política ampla e massiva de democratização da terra no Brasil. Atualmente, são criados dentro de uma programa de políticas sociais e resolução de conflitos, em vez de fazer parte de uma  estratégia de desenvolvimento focado no  mercado interno, tendo na reforma agrária  um de seus elementos estruturadores.  Esse impasse é muito desfavorável aos trabalhadores e se revela quando analisamos as omissões dos sucessivos governos quanto às suas obrigações contraídas junto aos assentamentos.
Pesquisas sobre a qualidade de vida nos assentamentos constaram que os formados entre 1995 a 2001 careciam de diversas estruturas sociais e serviços públicos. Por exemplo: 32% dos assentamentos não tinham casa definitiva; 49% não possuíam água potável; 55% não possuíam eletricidade; 29% das famílias com filhos em idade escolar não tinham acesso à escola de ensino fundamental; 77% não tinham acesso ao nível médio; 62% dos assentamentos não tinham  atendimento de saúde emergencial.  O passivo social nos assentamentos é enorme, o que reforçou a necessidade das lutas reivindicatórias por políticas públicas e justifica a sua intensificação nos  anos 90 e 2000.
Apesar da ausência das ações governamentais dentro dos assentamentos, a condição de vida destas famílias mudou para melhor. Estudos revelam uma melhoria da vida das famílias assentadas dadas suas condições anteriores vividas. Uma pesquisa aponta que 66% das famílias pesquisadas apresentam uma melhora no padrão de sua alimentação; 62% perceberam uma melhora no seu poder de compra, sobretudo de bens duráveis e 79% dos entrevistados viram melhoras na forma de habitação. Outro dado revelador da pesquisa referiu-se à confiança no futuro por parte destas famílias, 87% delas acreditam que o futuro será melhor. 
Estimulamos também as famílias assentadas a organizar agroindústrias de forma cooperativada, que é uma ferramenta fundamental para agregar valor à matéria- prima produzida, garantindo uma renda mensal aos associados; assegurando preços aos produtos e viabilizando a comercialização da produção. Estamos convencidos que o desenvolvimento do campo virá com a interiorização da agroindústria, gerando alternativas de trabalho para a juventude e para as mulheres.  Os assentamentos podem resolver as necessidades concretas das famílias, criando condições para o trabalho, para a produção e moradia, ou seja, organizando a economia e as dimensões da vida social, educacional e cultural das famílias assentadas. Busca-se com isto a elevação do nível educacional, cultural de todas as famílias. 
Desta forma, os assentamentos são a grande contribuição deste movimento social, o Movimento Sem Terra, para a sociedade brasileira.  Buscamos em cada assentamento desenvolver uma mentalidade e uma atitude de Soberania Alimentar, compreendendo que a nossa função social é produzir alimentos, sendo esta a nossa primeira tarefa histórica, eliminando a fome do meio das  famílias camponesas.  Buscamos também desenvolver a cooperação agrícola, como um ato concreto de ajuda, que fortaleça a solidariedade, mas também potencialize as condições de produção das famílias assentadas.
Fazemos esforços nas áreas de educação e saúde. As famílias assentadas têm o compromisso de promover a agroecologia cooperada que crie a base material e técnico-científica para repensarmos as nossas relações com a natureza e com os demais seres humanos, e que eleve a produtividade física dos solos e a produtividade do trabalho. Defendemos a diversificação produtiva, que modifica nossos hábitos e atitudes frente à natureza e alterando nossos hábitos de consumo e de alimentação.

Equipe de elaboração do Jornal Voz da Terra, da CPT-RS
Página Romaria da Terra

E a copa do mundo da reforma agrária? Esta já está perdida?

Por Jacques Távora Alfonsin*

A Bíblia conta a história de um numeroso povo pobre, vivendo sob cruel e duradoura escravidão, que foi libertado por intervenção amorosa de Deus. Ouvindo o seu clamor, identificado com o seu sofrimento, Deus prometeu-lhe a liberdade numa terra grande e boa.  
Esse povo iniciou então uma longa caminhada, enfrentando todo aquele tipo de problemas que, como a gente sabe, desafiam qualquer mudança e libertação. Foi perseguido, teve medo, hesitou, desanimou, sofreu violentas divisões internas, duvidou da promessa de Deus, se esqueceu de como tinha vencido, com Ele, o poder que o oprimia, adorou ídolos, envolveu-se em guerras contra outros povos e vizinhos hostis. 
Mal ou bem, todavia, não desistiu da sua caminhada. Profetas e lideranças que o acompanhavam, sempre o relembrava da causa que o colocava em movimento: Valia a pena. A terra prometida haveria de acolhê-lo, como um seio generoso, para quem não perdesse a fé e a esperança, nem o amor agradecido a um Deus que lhe queria muito bem e o libertara. Bem como as Romarias da Terra ainda refletem hoje, de alguma forma. Essa caminhada difícil, dura, libertária. Parece incrível que, vencidos tantos séculos, um numeroso grupo de gente se ponha a caminhar, movida por fé e esperança renovadas, pelas mesmas razões de tantos séculos atrás.
Pouco valorizada pela sociedade, ridicularizada pelas/os ricas/os, sujeita ao deboche até de parte da mídia, ela se reúne todos os anos, consciente de que existe muita escravidão ainda agora. A escravidão da miséria, que oprime multidões no Brasil, se deve, em grande parte, à escravidão da nossa própria terra. Está presa pelo direito de propriedade ilimitado, tomado pelo latifúndio indiferente à sua função social; está presa pela cobiça de transnacionais indiferentes à depredação do meio-ambiente; está presa pelo imediatismo de conveniências periódicas do chamado agronegócio exportador que não se importa se o destino dos seus frutos e produtos, em vez de alimentar o nosso povo, obtenha lucro lá fora, como uma mercadoria qualquer; está presa pela exploração do trabalho escravo; suas florestas, seus rios, seu ar, sua fauna toda e seu clima prosseguem vítimas de uma depredação indiferente à vida. 
Esses verdadeiros crimes praticados contra as/os brasileiras/os e sua terra são explicados e “justificados” em nome da liberdade dos mercados, como a única condição de progresso. Entretanto, todo esse uso nocivo da nossa mãe terra está previsto em lei, direta ou indiretamente, como proibido. Desde 1964, pelo menos, com o Estatuto da Terra e desde 1988, com a Constituição Federal, muitos instrumentos legais foram criados para impedir esse uso preventivamente ou puni-lo em caso de sua verificação.
A reforma agrária é uma política pública imposta à União que engloba tais instrumentos. As/os pobres libertados do Egito levaram quarenta anos para chegar à terra prometida. As/os brasileiras/os já estão esperando bem mais tempo. Se um tal modo de tratar a terra continua sendo reproduzido, assim mesmo, das duas uma: ou todas essas leis estão sendo mal interpretadas e aplicadas ou servem apenas como despiste para que o mau uso prossiga. Nesse caso, a verdade é feito presa da injustiça, como diz São Paulo na epístola aos romanos (1, 18), coisa comprovada por um tipo de interpretação que, de forma solerte, sublinha apenas aquelas regras que devem ser obedecidas para conservação do que já é, escondendo as que devem ser obedecidas para a implantação do que ainda não é, mas necessita ser, como a realização da reforma agrária, por exemplo.   
Por uma ou por outra daquelas hipóteses, então, não é que as vítimas dessa situação toda, como as/os índias/os, as/os trabalhadoras/es pobres sem-terra e sem teto, as/os quilombolas, as/os pequenas/os proprietárias/os de terra, as/os assalariadas/os do campo, as/os atingidas/os pelas construções de barragens, possam desobedecer a lei.   Elas/es tem o direito de desobedecê-la (!), pois  se trata de uma lei que, pelo menos da forma como vem sendo interpretada e aplicada,  trai a sua própria finalidade que outra não é a de garantir a vida, a dignidade humana, o bem-estar, a cidadania das mesmas pessoas a quem ela deve o seu próprio poder.  
Quando isso acontece - e está acontecendo atualmente - vale outro conselho de São Paulo: “...agora estamos livres da lei porque já morremos para aquilo que nos mantinha prisioneiros. Por isso somos livres para servir a Deus não da maneira antiga obedecendo à lei escrita, mas da maneira nova, obedecendo ao Espírito de Deus” (Rom. 7,6) 
Aí se comprova quão urgentemente tem-se de se reconhecer, de forma bem clara, a existência de um conflito histórico e permanente entre uma lei que mata como a que matou Sepé Tiaraju, cuja memória as romarias da terra sempre testemunham, Elton Brum da Silva (assassinado em 2009, no cumprimento de uma ordem judicial executada também aqui no nosso Estado) e tantos outros mártires da nossa caminhada em busca da terra prometida. Existe aquela que preserva intacta a injustiça social, a pretexto de que a lei escrita deve ser cumprida, e existe aquela em plenitude da qual, o amor do próximo supre de modo tão competente qualquer formalismo, que é capaz de inspirar uma economia solidária, garante de uma suficiência de bens para todas/os em vez de “sempre o mais é o melhor” para alguns, mesmo a custa do prejuízo alheio, como impõe o sistema econômico capitalista. O curioso é que, pelo menos na letra da primeira lei, a simples indicação da palavra “reforma” pretende indicar que a “forma” capitalista de exploração da terra aqui no Brasil, tem de ser corrigida...
É mais do que hora, portanto, de o povo pobre e trabalhador do nosso país ser reconhecido como sujeito do direito à terra e não mero objeto de autoridade. A “terra de trabalho”, como a CNBB apregoava ainda em 1977, é incompatível com a “terra de exploração”, como quer a CNA, a bancada ruralista no Congresso e os poderosos grupos econômicos nacionais e internacionais que essas últimas defendem. 
A reforma agrária está carente, então, de uma romaria que se inspire naquela que estamos celebrando hoje e, para não morrer de vez, tome o partido da terra de trabalho contra a terra de exploração. Embarque numa copa do mundo diferente. Destrave o Poder o Judiciário enrolado em processos (inclusive os de desapropriação) que prorrogam indefinidamente os seus fins; destrave o Poder Executivo que dê aos seus órgãos e autarquias (como o INCRA por exemplo) os meios eficazes das garantias devidas às prioridades impostas pelos direitos humanos fundamentais do povo pobre do campo; destrave o Poder Legislativo, libertando-o  do domínio econômico latifundiário, abrindo-o à democracia efetivamente participativa do povo vítima das leis de fachada, do “devido processo legal”, quando esse funciona apenas para travar o devido processo social, e da corrupção, também aquela que esconde os corruptores. Trata-se de outro jogo, portanto, muito mais sério e urgente do que o de futebol. Nele, nenhuma derrota pode ser, sequer, cogitada, para tanto exigindo-se um esforço até superior àquele que os Poderes Públicos do país estão empreendendo para realizar a Copa do Mundo aqui no Brasil. 
A nossa romaria da terra, assim, tem plena consciência de que não é somente a execução de uma lei de reforma agrária que vai colocar essa política pública em romaria capaz de alcançar a terra prometida. Por isso ela não abre mão de testemunhar que o seu simples movimento, repetido a cada ano, prova que o povo com direito de acesso à terra é o principal sujeito de direito, também, dessa possibilidade, desconsiderando como injusta e ilegítima qualquer lei, ordem, regra, ou determinação que impugne sua participação efetiva nessa reforma, em defesa da sua inadiável libertação. 

*Jacques Távora Alfonsin, é integrante da Comissão Estadual da Verdade. É advogado do MST e procurador aposentado do estado do Rio Grande do Sul. É mestre em Direito, pela Unisinos, onde também foi professor. É membro da ONG Acesso, Cidadania e Direitos Humanos e publica periodicamente seus artigos nas Notícias do Dia da página do IHU.

Por uma Reforma Agrária Popular

Durante todo século XX os camponeses de todo mundo e aqui no Brasil também  lutarão pela democratização do acesso a terra.   Essa luta estava inserida no direito democrático e republicano que todos os cidadãos de uma sociedade, por terem os mesmos direitos e deveres, tinham também o direito ao acesso a terra, por ser um bem da  natureza.  Mas a condição que se dava para garantir o direito era estar disposto a trabalhar nela.  Daí se diferenciava da sanha capitalista dos que queriam apenas terra para acumular riquezas.  Então na maioria dos países e aqui na América Latina se popularizou a palavra de ordem: TERRA PARA QUEM NELA TRABALHA!
Fruto da luta dos camponeses e de processos democráticos havidos em muitos países  foi possível então se realizar leis de reforma agraria e distribuir terras a todos os camponeses.  Esse tipo de reforma agrária que apenas distribuía terra, e não mudava o modelo econômico e nem o regime politico, ficaram conhecidas como reformas agrárias clássicas e burguesas. 
Aqui no Brasil, nunca conseguimos uma reforma agraria desse tipo.  Talvez tenhamos chegado mais próximo, na crise da década de 60, quando o governo popular de Joao Gloulart, apresentou um projeto de lei de reforma agrária, bastante radical, como forma de sair da crise e atender as necessidades dos camponeses.  O resultado foi um golpe empresarial-militar, que sepultou a reforma agrária, puniu os lideres, e impôs uma ditadura de 20 anos.
Mesmo despois com a redemocratização conquistada e a volta dos movimentos camponeses com mais força,  não foi suficiente para arrancarmos a reforma agrária clássica.   No máximo conseguimos algumas desapropriações, aqui e acola, que resultaram em assentamentos.   Os assentamentos são uma conquista camponesa, como é o assentamento de Tapes, aonde realizaremos a Romaria, porém não a reforma agrária.  Reforma agraria é a reestruturação e democratização de toda propriedade da terra.
Pois bem, agora estamos diante de novos desafios.  Mais do que a terra concentrada, o capital tomou conta de todos os bens da natureza: terra, água, florestas, fauna, sementes ... etc. E tomou conta do modo de produzir na agricultura, impondo o modelo do agronegócio, que se baseia na monocultura, no uso intensivo de venenos e de máquinas e na expulsão da mão de obra do campo.  Produz agora commódities para exportação.  Dá muito lucro, mas apenas para alguns.
Então, lutar por reforma agrária clássica, apenas por terra não é suficiente, é necessário  lutar contra o modelo de dominação do capital sobre a natureza que é de todos, e sobre a forma de produzir na agricultura, que atualmente é predadora, insustentável, e produz alimentos envenenados que geram câncer.
Por isso, os movimentos da via campesina  estamos levantando a bandeira de que é preciso agora lutar por um novo tipo de reforma agrária, uma reforma agrária mais ampla  que abarque o controle da natureza, o jeito de produzir, e garanta bem estar para toda população.    E esse tipo de reforma agrária somente será possível,  como fruto da conquista de amplos movimentos de massa, no campo, pelos camponeses, mas junto com os trabalhadores da cidade.   E, sobretudo que envolva toda sociedade.  Pois é uma luta contra o domínio do capital.  É uma luta por terra sadia.  Por alimentos sadios.  Por vida para todos, e não apenas para os camponeses. 

E o que seria uma Reforma Agrária Popular?
Nosso objetivo é contribuir para construir  permanentemente, uma sociedade justa, igualitária e fraterna,  em todo Brasil.   Para isso precisamos defender e construir:
1. A terra e todos os bens da Natureza - águas, florestas, fauna, minérios - devem estar a serviço de todos e precisam ser preservados para as gerações futuras.
2. A produção prioritária de alimentos saudáveis para todo povo brasileiro e para outros povos.
3. A produção agrícola deve basear-se na agroecologia, abolindo-se o uso de agrotóxicos e sementes transgênicas. As máquinas agrícolas devem ser adequadas às necessidades dos camponeses.
4. As sementes são um patrimônio da humanidade. Elas não podem ser propriedade privada e todos os agricultores devem ter o direito de usá-las e multiplicá-las.
5. As florestas precisam ser preservadas combatendo-se o desmatamento  e reflorestando as áreas degradadas com ampla diversidade de árvores nativas e frutíferas.
6. A Promoção de todas as formas de cooperação agrícola e instalação de agroindústrias cooperativas no campo.
7. As relações sociais de produção devem abolir a exploração, a opressão e a alienação. Os trabalhadores/as  devem ter controle sobre o resultado do seu trabalho.
8. O aproveitamento de todas as fontes de energia renováveis existentes nas comunidades e a organização de forma cooperativa para atender às necessidades da população.
9. O Respeito e demarcação de todas as áreas dos povos indígenas e das comunidades tradicionais: quilombolas, ribeirinhas, extrativistas e pescadores artesanais.
10. Todas as pessoas que vivem no campo têm direito a Educação de qualidade, em todos os níveis, garantida pelo Estado. Têm direito a usufruir dos bens culturais e ao acesso e controle dos diversos meios de comunicação social.
11.A Garantia aos trabalhadores rurais assalariados de todos os direitos sociais, previdenciários e trabalhistas conquistados pelos trabalhadores urbanos.
12. O Combate intransigente de todas as formas de violência contra mulheres e crianças.
13. O Combate de todas as formas de trabalho escravo, e expropriação das fazendas e empresas e punição penal  daqueles que o praticarem.
14. O acesso a formação técnica e política permanente, como instrumentos de emancipação cultural, política e humana de todos os que vivem no campo.
15. O campo deve ser um lugar bom de viver, onde as pessoas tenham direitos, oportunidades e condições dignas de vida. Devem ser combatidas e eliminadas todas as formas de discriminação social, de gênero, etnia, religião ou orientação sexual.

Equipe de elaboração do Jornal Voz da Terra, da CPT-RS
Página Romaria da Terra